Esse é sobre acúmulo (ou como defender sua mania de acumular)
Por isso uma força me leva a guardar, por isso essa força estranha. Por isso é que eu guardo, não posso largar, por isso essa pilha tamanha.
Acumular coisas pode salvar vidas. Talvez essa seja a maior desculpa para quem dispensou a ideia de minimalismo há muito (ou que nunca a aderiu, na verdade). No entanto, tem algo desse compromisso com o pouco ou com quase nada - com apenas o “essencial” - que arrebatou a estética pelo mundo afora. A sensação que uma parede vazia, branca, numa sala com poucos móveis bauhausianos transmite é, no mínimo, um calmante; é a realização do fato de que todos nós conseguimos viver com pouco. Ao mesmo tempo, todo esse vazio, quase um espelho para o vazio interno, parece varrer para debaixo do tapete a parte humana da estética. Talvez a salvação que o oposto de contornos simples e monocromáticos nos traga seja justamente o lembrete de que estamos vivos e que nossos ângulos não são tão retos assim.
Querendo ou não, é preciso lembrar o seu valor, até porque o minimalismo não é apenas uma escolha estética, mas um movimento artístico que, no primeiro momento, faz oposição à metáfora e ao subjetivismo¹, uma linguagem menos rebuscada e mais direta; as máximas do movimento moram em frases muito conhecidas como “menos é mais”, dita pelo arquiteto alemão Mies van der Rohe, e “a forma segue a função”, do arquiteto moderno Louis Sullivan². Para além disso, a simplicidade dessa linguagem descansa a visão tão acostumada ao universo “Onde está Wally?” que vivemos; traz uma sensação de paz, porém uma paz forjada, pois, na contramão das ideias iniciais, o que vemos hoje é uma distorção do movimento minimalista.
“Muitas vezes, o que hoje chamamos de minimalismo é puramente o resultado de um processo de industrialização e produção em massa, que se tornou ainda mais distante do design e da função real dos objetos. Afinal, no meio de um processo produtivo em larga escala, muito da atenção necessária ao design pode se perder pelo caminho. O resultado não é necessariamente um mundo mais minimalista, como a essência do movimento diria, mas sim mais estático, frio e menos colorido […]”²
Em um vídeo no Instagram, o designer Romério Castro aponta como exemplo duas cabines telefônicas: a clássica cabine inglesa, vermelha e cheia de ornamentos, e uma outra cabine cinza e retangular, sem algum tipo de detalhe. Enquanto a segunda cabine pode estar em qualquer lugar do mundo, a primeira, obviamente, só pode estar em Londres, e o que nos leva a ter esse tipo de reconhecimento são os níveis de personalidade cultural que uma estética consegue criar: enquanto a primeira tem sua maneira singular de dizer algo, a segunda se apropria do genérico para repetir algo. Isso quer dizer que, nesse sentido, o maior perigo do minimalismo contemporâneo reside na padronização, que tem como efeito colateral imediato a despersonalização. Onde ficam a cultura e as especificidades de cada lugar e de cada pessoa?
E se repararmos no mundo que se constrói independente do ser humano? A natureza parece se acumular em si mesma a todo momento. Galhos retorcidos, folhas diferentes sobrepostas, animais vários rodando por onde bem entendem. Resumindo, a natureza seria aquilo que se encaixa no conceito de poluição visual, o oposto de mínimo. Também assim é a natureza humana: a harmonia da natureza reside no caos, enquanto o minimalismo reside na tentativa de traduzir esse caos em harmonia, o que faz dele artificial. Bem, podemos pensar o conceito de natural como sendo a invenção e reinvenção a todo momento, como a dobra no papel que nunca mais o deixará liso novamente. Portanto, a artificialidade do minimalismo contemporâneo é quando este abre mão das marcas das dobras em troca de uma imagem muito lisa, logo reduzida, de tudo e até mesmo de si. É o menos cada vez menos.
Em outras palavras, talvez o genuíno do ser humano seja acumular: acumular desejos, acumular conquistas, momentos, funções, memórias, roupas e por aí vai. É esse o essencialmente humano que reside no excesso, na bagunça, na contradição e na diversidade de temas e formas. É essa a matéria prima da personalidade, todo o acúmulo de uma vida gerida conforme às ordens da contingência. Mesmo nas produções artísticas que seguiam as primeiras ideias minimalistas possuíam a sua forma de estar no mundo, a sua personalidade. Algo de singular estava sendo dito, mas nada parece se acumular nesse minimalismo contemporâneo, além de espaços vazios, que por si só não exprimem nossa fome infinita de tentar preenchê-los. Aqui, o que se prolonga é a profunda escassez de conteúdo, o silêncio de não ter algo a dizer. Quem acumula pelo menos tem onde repousar uma história.
Observo regularmente se meu nível de acúmulo subiu ao nível de virar um personagem da série “Acumuladores compulsivos”. Não batendo essa meta, posso dizer que sou um acumulador nato: vou de objetos e trecos insignificantes e inúteis a neuroses e pensamentos intrusivos desnecessários; papéis, tickets de cinema, shows, sacos e embalagens de compras, enfim, várias coisas miúdas, mas de todos os meus acúmulos, os maiores são aqueles que se camuflam pelo nome de coleção. A mais óbvia de todas são os livros: tem livro amontoado na estante, em cima da mesa onde trabalho e até mesmo espalhados pela casa de outras pessoas que emprestei e ainda não me devolveram.
Porém, a minha “coleção” mais recente foi se construindo ao longo dos anos de maneira inconsciente, e por pouco não ficou 100% despercebida. Aconselho que abra a galeria do seu celular e analise com atenção o que se encontra lá, pois foi assim que descobri um acúmulo de fotos de obras de arte das exposições que visitei. Não posto, não mostro para as pessoas, e em quase todos os casos só fotografei porque não queria esquecer, que é uma das desculpas que leva uma pessoa ao acúmulo de algo: o medo de perder. A verdade é que essa edição foi apenas uma desculpa para dar um propósito a apenas algumas dessas fotos que estão enchendo a memória do meu celular e que não tenho coragem de apagar.
Coisas para sobreviver ao apocalipse moderno até a próxima edição:
Para quem é de Salvador (BA): A exposição “Quase árido”, na galeria RV Cultura e Arte (aberta ao público até o dia 23.11.2024)
Caetano Galindo quer a língua viva
Colapso climático: a culpa é de quem?
As vozes da minha cabeça:
Qual o princípio da arte minimalista?. Artools, 22 de junho de 2023. Disponível em: <https://blog.useartools.com.br/qual-o-principio-da-arte-minimalista/>
CARVALHAL, André. O problema do minimalismo contemporâneo. Archtrends Portobello, 6 de julho de 2023. Disponível em: <https://blog.archtrends.com/minimalismo-contemporaneo-problemas/>
Gente, essa veio na hora certa! Gabriel me falava justamente da pesquisa dele sobre a questão dos objetos... objetos que pessoalizam os espaços, que cumprem função de memória pessoal, histórica e social, e os problemas de quando um velhinho, por exemplo, ao ser institucionalizado, tem de deixar um acumulado de coisas para trás... o que é no mínimo triste para não dizer violento. Enfim, converse com Gabi! (ps. venho lendo suas niusleter de fininho e sua escrita sempre me toca.) abs